Quando a barista chorou

A história por trás do Catuaí 81: como Genildo virou parceiro do Coffee Lab

2003 foi o ano em que conheci os sabores dos cafés das montanhas do Espírito Santo. O estado é conhecido pela produção enorme de robustas, cafés de qualidade geral inferior aos arábicas. Estes últimos, eu não sabia que eram produzidos no estado, tampouco que seriam inesquecíveis.

Passei nas montanhas do ES com dois amigos produtores das matas de Minas, do outro lado da serra. Provei os cafés e jamais os tirei da cabeça a ponto de infernizar várias pessoas perguntando sobre lotes de cafés de lá, desde o primeiro ano de Coffee Lab, 2009.

Em 2012 um amigo trouxe três lotes de café, apenas codificados, sem qualquer informação sobre o produtor, município ou fazenda. Ansiosamente os provei e dois deles eram tão espetaculares quanto minha expectativa, construída ao longo de 9 anos. Comprei ambos imediatamente!

Relacionamento direto e frequente com os produtores de quem compramos é uma das premissas importantes do nosso trabalho. Fui correndo conhecer os dois produtores: o Genildo Benincá e o Joselino Meneguete.

São pequenos, muito pequenos. Todo o trabalho da lavoura é feito pela família, inclusive colheita, que na região só pode ser manual em função do terreno muito inclinado. Não sabem provar café e avaliar a qualidade de sua produção e, por isso, ficam nas mãos dos compradores que, muitas vezes sub-avaliam a saca (o valor da saca de café é estabelecido pela qualidade geral do café na classificação dos provadores).

Joselino mora num pedaço de paraíso, um pequeno sítio cujo ecossistema lembra muito as lavouras da América Central. Talvez por isso seu café tenha um sabor tão peculiar, “diferente dos cafés brasileiros”, como dizem alguns especialistas. Seu filho mais novo, o único que ainda mora com os pais e ajuda na lida com o café, estudava para ser policial quando os visitei pela primeira vez. O filho já desistiu da ideia após inúmeras tentativas de demovê-lo do perigoso projeto de vida. Agora, junto com o pai e a mãe, consegue ver a terra como um futuro viável e próspero, especialmente se continuar a vender o café dignamente. E, se depender de mim, terão que plantar mais pés e procurar mais terras para darem conta de todos os torrefadores de qualidade do mundo que se apaixonaram pelo café da família Meneguete.

Joselino e produtores das montanhas do ES costumavam vender seus melhores cafés por R$ 350,00 a saca de 60kg de grãos crus. Só para se ter uma ideia, o custo médio de cada saca, para o produtor da região, é R$ 320,00. Senti uma profunda inconformidade quando soube dos valores praticados na região por se tratar de cafés de qualidade rara e saber que seriam revendidos com ágio enorme pelos corretores e exportadores. Resolvi desenvolver uma tabela de remuneração por qualidade de bebida, o que não é novidade no mundo. Novidade foram os valores propostos. Voltarei à tabela mais tarde.

Genildo, seu irmão e as esposas trabalham na terra que herdaram de seus pais, ainda vivos. Quando cheguei lá pela primeira vez, colhiam com pés descalços porque as encostas são muito íngremes e qualquer tipo de calçado é mais escorregadio do que a sola dos pés. Não muito empolgados com a visita, a conversa foi quase monotônica. Quando descobri que tinham recebido quatro vezes menos do que o valor que paguei pelo lote que comprei de sua fazenda, Genildo, vendo minha reação de raiva, começou a prestar mais atenção na minha presença e se abriu. Disse que em 2013 cortaria o café e plantaria eucalipto em toda a terra porque não conseguia mais manter a família.

Fiquei desesperada com a possibilidade de perder um fornecedor excepcional como ele. Pedi um ano de chance e prometi que pagaria pelo menos 3 vezes mais por saca, independente da qualidade da bebida. Sabendo que ele não me conhecia e sendo desconfiança o sentimento que rege a maioria das relações comerciais cafeeiras no Brasil, disse que assinaria um contrato naquele momento se ele assim o quisesse. Respondeu que não precisava e me fez várias perguntas. Contei sobre o mercado de cafés de qualidade, o trabalho no Coffee Lab e outras torrefações do mundo, que mantém relações realmente justas com seus fornecedores. Saí de lá acreditando que tinha conseguido impedir que mais uma família brasileira desistisse da cafeicultura.

Para o vínculo se fortalecer e a relação de confiança crescer, voltei a visitá-los mais três vezes antes da colheita. A cada viagem, levava comigo um especialista ou produtor com quem Genildo pudesse conversar mais tecnicamente e se identificar. Cada sugestão dada pelos meus companheiros era acatada pela família e, a cada retorno, os resultados e melhorias no processo eram relatados por Genildo.

Com mínimos recursos financeiros, ele e o irmão colocaram termômetros e sombrite no terreiro para diminuir a temperatura de secagem do café recém colhido. Gostaram das mudanças, contaram que o calor dentro da estufa (tipo de terreiro mais comum na região em função de alta umidade) diminuiu consideravelmente, deixando o trabalho deles mais confortável. O benefício ao café só verificaríamos após todo o período de colheita e processamento, mais ou menos 6 meses depois.

Durante todas as visitas, pedi que separasse os lotes e talhões o máximo que pudesse para conseguirmos mapear os sabores e variedades de sua fazenda; para sabermos que pedaço da terra e/ou variedade tinham mais potencial para qualidade. Em janeiro de 2014, encontrei vários lotes separados e organizados por letras e números. Quase morri de felicidade. Saí da fazenda com 16 amostras e uma mala gigante extra.

Voltando à tabela. Em uma das visitas, disse a ele que o Coffee Lab usava uma tabela de remuneração por qualidade e que seus cafés seriam também avaliados e precificados segundo o que segue:

85 pontos*: R$ 700,00
86 pontos: R$ 750,00
87 pontos: R$ 800,00
88 pontos: R$ 850,00
89 pontos: R$ 900,00
90 pontos ou mais: R$ 1000,00 e acima

*As avaliações são feitas usando rigidamente o protocolo desenvolvido pela SCAA – Specialty Coffee Association of America. Os cafés com nota igual e superior a 84 são negociados com o produtor e seus preços variam conforme quantidade do lote.

Ansiosamente voltamos ao Lab, torramos as amostras e, depois de 24 horas, provamos todas. Um dos cafés da mesa foi a grata surpresa. Foi a maior avaliação de um café brasileiro feita por nós, que costumamos ser mais rígidos nas degustações e pontuações.

Que emoção enorme poder ligar para o Genildo e dizer que, por um dos lotes ele receberia R$ 950,00 por saca e pelo segundo lote, R$ 1200,00. Ele quase desmaiou de felicidade do outro lado da linha e nós… fomos ao chão.

Voltei à fazenda logo depois e o olhar deles era outro. Haviam desistido dos eucaliptos e sentiam profundo orgulho de seu produto. Contei a eles que o café havia sido selecionado, às cegas, para ser servido em um dos mais importantes simpósios cafeeiros do mundo e confundido com café do Quênia pelos jurados estupefatos quando a amostra se revelou de origem brasileira.

Logo depois do simpósio, voltei com as fotos e histórias sobre o impacto que o grão dele causou. Também precisávamos combinar a colheita deste ano. Sentamos à mesa para tomar um café, ver as fotos e ofereci um adiantamento do valor mínimo de 85 pontos por 60% de sua produção para que conseguisse colher com mais conforto e perspectiva. Os prêmios por pontuação acima do mínimo seriam acertados após a avaliação de cada amostra. E com toda a família à mesa — pais, irmão, esposa, cunhada e filha — senti aquela sensação boa de confiança mútua e perenidade que trazem alegria e conforto ao coração. Já não via mais desconfiança ou dúvida em seus olhares. E assim falamos dos planos para os lotes e variedades, agora, de um nível muito mais desenvolvido e consciente.

Antes de eu pegar a estrada, Genildo disse que precisava me mostrar algo. Levou-me à lateral da casa onde me mostrou seu carro novo e, com lágrimas nos olhos, disse que era a primeira vez na vida deles que sobrara dinheiro. Choramos os dois.

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