CADA UM SABE A DOR E A DELICIA DE SER O QUE É

O café me trouxe pessoas e experiências preciosas.  Ele mudou completamente o rumo daquela que aos 14 sonhava em ser bailarina na Broadway e que, até recentemente, ainda esperava atuar como psicóloga. E hoje me constrói, define muito do que sou e alegra minha alma.

As conquistas, o crescimento e os bons desafios, além de todo o aprendizado de trabalhar com um universo ainda em formação e tão embrionário, sempre foram minha linha de frente. Mantive o lado sombrio e os acontecimentos tristes, ofensivos e humilhantes guardados no estoque por não querer que me definissem como profissional ou se antepusessem à minha busca por conhecimento e à construção que fizemos ao longo desses 18 anos.

Talvez agora me sinta à vontade para falar sobre um assunto desconfortável, tão presente e ainda muito velado. Não quero aqui expor ninguém ou, tampouco, dar nome aos bichos, mas especialmente validar a sensação de inadequação e falta de espaço que algumas mulheres sentem. E dizer que, sim, ainda há diferença de credibilidade, de tratamento. E ainda há desrespeito.

A primeira vez que saí do café para trabalhar em Psicologia foi em 2002. Ganhara o 1o Campeonato Brasileiro de Barista e as coisas estavam agitadas profissionalmente. No entanto, as humilhações e agressões que sofri na época foram tão fortes que não quis continuar num meio profissional tão feio. Em eventos internacionais, por exemplo, senhoras produtoras de café me olhavam com desdém e retiravam seus maridos da minha presença como se eu tivesse uma doença contagiosa. A fofoca espalhava que eu seria “destruidora de lares” e só tempos depois entendi o espanto de todas ao verem no meu dedo a aliança que anunciava a construção do meu próprio lar. Casaria poucos meses depois dessa feira internacional.

O mais grave episódio foi ter sido agarrada na calçada, na frente dos seguranças de um restaurante, por uma das pessoas que mais admirei profissionalmente na vida. Um executivo importante do café especial no Brasil, que era, até aquela data, um modelo de profissional e homem para mim. Suas mãos agarraram meus seios enquanto tentava me beijar. Afastei-me dele  enquanto era convidada a ir para um lugar mais privado e fui para casa atônita e em choque e muito decepcionada. Eu desejava que ele me olhasse profissionalmente, que me ensinasse, não que colocasse suas mãos no meu corpo. Uma semana depois soube, através de um dos muitos anjos que me mostraram os bastidores da sujeira ao longo dos anos, que, numa reunião, homens do café teriam dito a ele que eu seria “uma foda fácil”. (curioso é que nenhum deles tivera o privilégio de me comer…)

Em outra ocasião mais recente, tive minha roupa agarrada e fui empurrada para que saísse do caminho no meio de uma discussão, depois de ouvir “enfia a merda do seu dinheiro no cu”. Posteriormente, pude viver na pele a descrença sobre relatos femininos de abuso. Que horrível surpresa ver que pessoas das minhas relações puderam duvidar de mim ao me expor e contar algo tão humilhante como agressão física e verbal. Não há pontos de vista nesse tipo de situação. Não há margem a interpretação.

Pouca coisa me entristeceu mais nessa caminhada do que ver pessoas queridas e conhecidas duvidarem de um relato tão constrangedor. Daí não pude deixar de me questionar sobre o porquê e pensar que a postura monotônica, aparentemente calma, de fala mansa e de poucos movimentos do camarada, contra o meu jeito “forte”, “decidido”, “polêmico”, “destemido” (e aqui estou usando alguns adjetivos imputados a mim), possa ter influenciado. Por que uma mulher bem sucedida e que abriu muitos matos nesse crescente universo de café de qualidade não seria passível de agressão? Sou tão vulnerável quanto qualquer pessoa! Que tipo de postura eu teria que ter para que acreditassem que posso, sim, ser agredida? Como me vestir? O que falar? Devo pasteurizar meus tons para que eu seja um crível alvo de agressão e abuso?

Ainda hoje, coisinhas pequenas ocorrem no dia a dia como eu ter que carregar uma saca de 60kg sozinha, em represália por ter pedido para mudar um procedimento de mais de 15 anos em uma torrefação terceirizada usada por um cliente de consultoria.

Voltemos ao rótulo “polêmica”. Ser testemunhas ocular do início da história do café especial no Brasil talvez contribua para alimentar, essa alcunha, essa polêmica (rs). Ser pioneira tem o seu bônus, mas também tem o seu ônus.  O triste fato é que raramente vejo alguém se referir a um homem com este adjetivo. Geralmente são “inteligentes e de opiniões fortes” ou até “rigorosos”, qualidade esta que eu adoraria associada a mim na ‘rádio peão’ por eu achar apropriada no meu caso.

Acredito que qualquer análise de qualidade requer contexto; não existe qualidade absoluta. isso contrapõe a expectativa das pessoas sobre minha opinião a respeito de cafés de baixa qualidade do mercado, sobre cafés em cápsulas, açúcar no café ou até colheita mecanizada, só para citar alguns exemplos. Quando falo positiva e contextualizadamente sobre esses assuntos, a surpresa no olhar das pessoas expõe a inadequação do rótulo “polêmica”. Mas há séculos são as mulheres as polêmicas, as escandalosas, as bravas, as histéricas, mesmo que alguns homens tenham uma atividade uterina muito maior.

Podemos usar o que temos de mais feminino para mudar isso, insidiosa e caleidoscopicamente como só nossa mente múltipla é capaz de fazer. Talvez ainda tenhamos que  estudar mais do que os homens e nos provarmos mais que eles para reconstruir séculos de história. Mas agora, sem esconder que transbordamos de emoção e que tudo bem.

Sim, talvez eu tivesse que ser uma mulher pasteurizada para causar menos desconforto nesse universo conservador, machista e colonialista. Mas sou crua, não quero deixar de sê-lo e tenho orgulho disso.

Isabela Raposeiras

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